Noites frias e dentes escurecidos pelo café. Uma combinação à qual já se acostumara havia muito tempo. A mochila sempre com a garrafa térmica e alguns sanduíches para a fome da madrugada. Algum material básico para a higiene, incluindo a bucal, muitas vezes, porém, negligenciada. O mesmo café que lhe manchava os dentes também lhe causava dores terríveis. “Eu falei que essa tua gastrite ia piorar com tanto café”, resmungava sempre a falecida esposa, quando ainda viva, é claro. Ruim com ele, pior sem, dizia o velho… e ainda havia lhe dito alguém que nem se sabia direito se o café realmente tinha alguma relação com tal distúrbio gastrointestinal… mas o que haveria um velho viúvo de querer preservar ainda a velha carcaça que, vez ou outra, era por ele próprio vista até mesmo como prisão? Já chegara a pensar em suicídio, várias vezes, pois a solidão se tornara um tormento. A companheira morta, os filhos ausentes, os vizinhos que sequer alguma educação mostravam para lhe dar um simples bom dia… invisível… a guarita se mostrava, de certa forma, até mais confortável e acolhedora que a velha, silenciosa e vazia casa na qual morava.
A empresa de transportes ocupava uma grande área, com muros altos e um grande barracão no qual ficavam os caminhões e veículos menores. Além de alarme eletrônico, também três cães de guarda, todos da raça Rotweiller, faziam a segurança do local. Os animais sempre lhe foram tão dóceis, porém o alarme eletrônico lhe causava algum receio, receio de acioná-lo sem querer, pois era um antiquado homem não acostumado ainda com as modernas tecnologias.
E assim passavam as noites, lentas e frias, bastante nebulosas no inverno.
Era uma área não residencial e, com o cair da noite, o silêncio era quase absoluto, silêncio cortado somente pelos eventuais latidos dos cães ou pelos passos de alguém que era, quase que raramente, obrigado a se aventurar por aquelas nada seguras bandas. Tornou-se bastante notório o caso da enfermeira que, voltando de um plantão, pensou em encurtar caminho e adentrou a trilha do matagal ao lado da transportadora. O velho vigia, naquela ocasião ainda um tanto jovem, disse nada ter ouvido, sequer latiram os cães , mas a moça foi encontrada no dia seguinte, sem vida e apresentando sinais de violência sexual. Ela tinha somente vinte e três anos.
Mas havia algo que ainda lhe promovia algum desejo de continuar em tal e extenuante ofício, além de ficar longe da vazia e pedante casa: Helena.
Dizia trabalhar em um escritório ali perto e passou a, todas as noites, tomar a estreita rua paralela ao muro maior da empresa. Sempre tarde da noite. Sempre no mesmo horário, após as 21h, passos delicados eram ouvidos e sua silhueta surgia, fantasmagórica, em meio à neblina. Sempre sozinha. O velho temia pela sua segurança, pois impossível seria não lembrar do assassinato sem solução que chocou toda aquela região. Ela ria e dizia nada temer, pois já se acostumara à escuridão. O velho deixava sua guarita e a acompanhava durante pelo menos duzentos metros do trecho menos iluminado, até vê-la dobrar a esquina e atingir uma via mais segura.
Não havia nenhuma intenção amorosa na boa vontade do velho vigia, nada disso. Na verdade, ele a via, talvez, como a filha que nunca tivera. Os filhos homens, todos, ganharam o, ou se perderam no mundo. Helena preenchia a solidão que sentia, preenchia uma lacuna causada pelo abandono dos filhos. Tinha realmente idade para ser sua filha, e era muito bonita e simpática. Pele pálida e delicada, Cabelos negros, grandes e enigmáticos olhos. Ele nunca soube precisar se todo o carinho e afeto que por ela desenvolvera era mútuo. Talvez ela estivesse apenas sendo simpática e educada. Talvez visse nele realmente a figura de um pai. Ou ainda, quem sabe, só estivesse se aproveitando de sua companhia para ter alguma segurança e não ser outra vítima nas manchetes do jornal local.
Apesar de tal rotina já existir há algum tempo, pouco sabiam um do outro. Os duzentos metros que percorriam lado a lado não davam espaço à conversas mais profundas. Dela ele sabia ser secretária. O porquê de voltar sempre tão tarde nunca teve liberdade para questionar. Se tinha namorado ou marido, também não sabia. Pensava que não… e como perguntaria esse tipo de coisa? E que tipo de homem deixaria sua companheira aventurar-se perigosamente, todos as noites, sozinha por perigosas e escuras ruas?
Helena também pouco dele sabia. Somente ser um viúvo solitário que parecia ainda trabalhar para evitar cair no esquecimento absoluto… o velho procurava ainda ter alguma utilidade na vida, devia ser isso…
É claro que havia também mornas e prazerosas noites de verão, com a temperatura agradável e o dia insistindo em ficar por mais tempo. Sem a úmida e lúgubre neblina ao fundo, a silhueta de Helena surgia menos surreal. Já não se parecia com um sonho, ou uma gótica pintura que remetia a contos de terror. Mas parece que tais noites de verão não ficavam tão marcadas na memória de nossos personagens quanto aquelas em que Helena parecia, apesar de sempre negar, pedir alguma ajuda ao velho vigia. A melancólica neblina combinava perfeitamente com a pálida pele, assim como com seus cabelos negros e seu olhar, por vezes, tão intrigante e misterioso.
Passos fazem-se ouvir na noite fria e silenciosa. Como já era rotina, os cães latem. A silhueta do jovem casal recorta a pouca claridade proveniente de um dos pontos de luz que, vez ou outra, parece querer apagar-se. É inverno e os jovens caminham abraçados na ânsia de aplacar um pouco todo aquele frio. Um dos cães reconhece Helena e o alarido cessa.
— Vem sempre me buscar mesmo?
— Com certeza, mina minha não vai andar por aí no escuro desse jeito… é muito perigoso, e semana que vem tiro o carro da oficina, vai facilitar bastante nossa vida — Responde o jovem com olhar apaixonado.
O casal passa ao lado da velha guarita. Helena ignora momentaneamente o namorado recém conquistado e diminui o passo, hesitante. Lança um olhar triste e profundo em direção à velha e deserta guarita. Ele nada percebe, pois encontra-se distraído comentando que ela jamais deveria ter feito, sozinha, aquele trajeto, uma vez que era muito bem conhecida a história da jovem assassinada pelo vigia que, por tantos anos, trabalhou naquela empresa.
ESCRITO POR: Sergio Kuns