Tive uma infância bastante interessante. Morava no interior do Paraná, em uma localidade tranquila e ordeira. A maioria dos moradores eram agricultores, descendentes de imigrantes europeus. Era comum cruzar com moradores pelas estradas e ouvi-los conversando em polonês, ou ucraniano. Mesmo em casa falávamos muito pouco o português.
No caminho de ida e volta da escola, pelas estradas de chão batido, sempre havia muita diversão. Eram quatro quilômetros para chegar à escola, e lembro o quão prazeroso era coletar amoras na beira da estrada. Já bem perto de casa, havia uma cachoeira, não muito grande, ao lado de uma grande curva. Sempre tive medo de chegar perto dela. O barulho da água me apavorava. Um dia sonhei que via uma velha parada, no meio do carreiro que dava acesso à cachoeira. Enquanto os amigos aventuravam-se em escalar a parede de pedras, eu os esperava, lembrando da velha que vira em sonho. Também havia momentos de adrenalina. Era bastante comum encontrarmos tropeiros conduzindo boiadas, então tínhamos que escalar os barrancos e esperá-los passar.
As noites no interior, em uma antiga casa de madeira, podem trazer emocionantes surpresas. Eu tinha perto de dez anos quando tudo começou.
Não tínhamos luz elétrica. Usávamos lampiões a querosene. Lembro de meus irmãos mais velhos jogando cartas até algumas horas da noite, enquanto ouviam rádio. Depois íamos todos deitar. Eu dormia com mais um irmão, Carlos, no sótão. Éramos uma família grande e tínhamos que aproveitar todo e qualquer espaço. O sótão acabou sendo improvisado e dele fizemos nosso quarto.
É comum que casas antigas, de madeira, façam algum barulho, principalmente à noite. Meu pai já tinha dito isso quando lhe contei, pela primeira vez, dos passos que ouvia. Ele falava algo sobre a temperatura, e que as madeiras “trabalhavam”. Isso explicaria tudo.
Eu nunca soube precisar em que horas isso acontecia, só sei que devia ser madrugada. Depois que os passos silenciavam, nós ficávamos acordados até o sol nascer, levando consigo a escuridão. A explicação técnica dada pelo nosso pai não nos convencia. Tentávamos pegar no sono o mais rápido possível, na esperança de que, dormindo, nada escutássemos, mas era inútil. O medo e a adrenalina nos tiravam o sono. Ficávamos na expectativa, cada um sentado em sua cama, com o lampião aceso. Então acontecia.
Os passos podiam ser ouvidos, lá de baixo, ao longe. Então começavam a subir as escadas que davam acesso ao sótão. Lentos. O ranger de madeira velha. O pavor tomava conta de nós, encolhidos em nossas camas. O som dos passos ia ficando mais alto, até que paravam, sob a porta. Tentávamos prender a respiração, para fazer silêncio absoluto e, com isso, acabávamos também ficando ofegantes. Depois que os passos cessavam sob a porta, seguiam-se longos e intermináveis momentos de silêncio. Nunca entrou no quarto. Meu irmão acabou improvisando uma taramela, mas a maçaneta nunca sequer fora forçada. Depois de algum tempo experimentando pavor extremo, os passos faziam o caminho de volta. Lentos e torturantes, iam embora.
Quando falamos com nosso pai, falou das madeiras. Dissemos que não, que era possível perceber perfeitamente que eram passos, alguém calçando sapatos, não sabíamos dizer de que tipo. Insistiu na história das tábuas velhas e nos perguntou se falamos com mais alguém sobre aquilo. Terminou, ríspido, a conversa, prometendo nos dar uma surra caso voltássemos a tocar no assunto.
Foram perto de dois anos vivendo esse pesadelo. Tentei mais uma vez falar com ele, pedir ajuda, e a prometida surra aconteceu. Disse que seria muito pior caso falássemos com a mãe. Não queria que a assustássemos com, em suas palavras, nossa fértil imaginação. Dois anos mais tarde, mudamos para a cidade, por causa da escola. Deixamos as estradas de chão batido, as amoras e a cachoeira da grande curva, e nos adequamos, aos poucos, ao cenário urbano. Éramos eu, meu irmão Carlos e uma irmã, Lúcia, maior de idade, que ficaria com a responsabilidade de cuidar de nós.
O tempo passou… ainda voltei algumas vezes ainda visitar meus pais, mas nunca para pernoitar. Logo ambos morreram e nunca mais voltei àquela localidade. Penso que, se meu pai sabia que passos eram aqueles, levou consigo tal segredo. Nunca mais conversei com Carlos sobre aquilo. Mas continua acontecendo, de certa forma. Mesmo que em meus sonhos, continuo ouvindo os passos. Continuo vendo, mesmo com a fraca luz do lampião, o pavor estampado no rosto do meu irmão. Eu já estava casado, tinha um filho, mas aquele assunto ainda estava muito vivo .
Hoje, na propriedade que era dos meus pais, vive um dos meus irmãos mais velhos, Pedro. A velha casa ainda existe, porém está inabitada, e em péssimo estado. Virou uma tapera. Pedro construiu outra no grande terreno, e lá vive com a esposa. Seus filhos já estão, também, na cidade.
Tive aquela ideia em um final de semana em que, mais uma vez, tivera o mesmo sonho. teria que voltar lá, talvez encontrasse alguma resposta. Disse a minha esposa que visitaria Pedro, para passar a noite. Eram dez quilômetros, uma caminhada a qual eu já estava bastante acostumado. E assim o fiz. À tarde cheguei a minha terra natal. Colocamos a conversa em dia, tomamos chimarrão. Mostrou-me seu pomar e apresentou-me alguns dos seus gatos. O fato de não gostar de cachorros era detalhe favorável ao meu plano. Convidou-me para passar a noite. Disse-lhe que não poderia, que teria que voltar ainda naquele dia. Assim que a tarde caminhava para seu final, como parte do meu plano, despedi-me e peguei a estrada. Mas logo que sai do seu possível alcance visual, entrei na mata que bem conhecia e dei a volta, até chegar na antiga casa.
Sentia que fazia algo errado, parecia um intruso, mas Pedro não entenderia minhas razões, por isso preferi tal estratégia. Entrei na velha casa. Desenhava-se no horizonte um belo pôr-do-sol, e começava a esfriar. Eu sabia que teria que fazer silêncio para não chamar nenhuma atenção. O celular estava sem torre. O chão que rangia sob meus pés trouxe muita nostalgia. Lá estava a velha cozinha, com o fogão feito de tijolos. Um lampião pendurado na parede. Havia algumas coisas velhas espalhadas pelo chão. Alguns móveis quebrados, tábuas, sucata. Milho ensacado onde fora nossa sala. Cheiro de pó. Dirigi-me à escada com certa hesitação. Cada degrau que tremia me fazia pensar não ser aquela uma boa ideia. Mas tinha que prosseguir. Logo estava em frente à porta do sótão. Titubeei por um instante e coloquei a mão sobre a maçaneta. Estava, finalmente, no velho sótão que nos servia de quarto e que continuava vivo em meus sonhos. A taramela ainda estava em seu lugar. Passaria a noite ali.
Como nada ali havia além de muita sujeira, sentei a um canto, sobre a mochila, com as costas contra a parede. Logo escureceu e a claridade da lua penetrou por entre as telhas quebradas, assim como pela pequena janela, já sem vidros, iluminando parcialmente o cômodo. Eu encarava a porta e só pensava que aqueles sonhos tinham que, de alguma forma, cessar.
Acabei adormecendo, mesmo desajeitadamente sentado. Não sei precisar que horas eram quando despertei, mas ouvia sons de animais noturnos do lado de fora. Acredito que corujas. As costas e o pescoço doíam. Uma perna estava dormente. Que diabos afinal estava fazendo ali? O que diria a esposa, o irmão, ou qualquer outra pessoa a quem contasse sobre aquilo?
Um estalo. O som viera lá de baixo. Madeira trabalhando com a oscilação da temperatura? No silêncio da noite, comecei a reconhecer os passos que subiam, enquanto os degraus rangiam dolorosamente. O pavor que experimentara quando criança se apresentava novamente. Ninguém sabia que eu estava ali. Sentado sobre a mochila, abracei os joelhos, da mesma forma que fazia, na cama, quando criança. Os passos, cada vez mais próximos, agora já nos últimos degraus. Chegam sob a porta e param. O silêncio é absoluto. Eu prendo a respiração o tanto quanto posso, e sinto o coração, seus batimentos, acelerados. Momentos angustiantes se seguem, no sótão parcialmente iluminado pela lua cheia.
O chão range e os passos lentos se fazem ouvir, novamente, mas agora voltando. Exatamente como sempre acontecera. Não era madeira trabalhando, definitivamente. Esperava, pernoitando naquele sótão, depois de tanto tempo, que meus sonhos cessassem. Mas voltaram como pesadelos. Assim que os passos deixaram de ser ouvidos, chorei muito. Pensei em deixar logo a casa, mas então decidi que seria mais prudente se esperasse o dia amanhecer. Evitaria levar um tiro. E assim o fiz.
Tão logo o dia amanhecia, deixei a velha casa, pelos fundos, adentrando o mato. Estava frio e os primeiros raios de sol despontavam no horizonte, propiciando um belo espetáculo. Acredito que Pedro ainda não tivesse levantado, pois não havia fumaça em sua chaminé. Pulei uma cerca e entrei novamente na estrada. Seriam dez quilômetros de caminhada para pensar na longa noite que tivera. Imagino que, com tal experiência, meus sonhos não cessassem, pelo contrário, deveriam se intensificar. Eu teria que procurar uma forma de conviver com eles. Fugir sempre se mostrara inútil. E ir ao seu encontro, pelo visto, também.
ESCRITO POR: Sergio Kuns