Quem disse que as histórias que criamos têm fim? tanto as medíocres, quanto as mais consagradas, hoje sei que não findam no ponto final. Pode ser, sim, o fim de uma narrativa, uma voz que nos conta e, tão breve, silencia. Mas as coisas que criamos não se extinguem assim, simplesmente, como num passe de mágica… isso não depende mais de nós.
Sei bem disso porque, tempos depois de finalizar um conto, passei a vivenciar acontecimentos relacionados a ele. A história não era algo de que eu pudesse me orgulhar, muito pelo contrário. Até o escritor mais inexpressivo conseguiria reunir tais ideias e clichês baratos e chamar aquilo de literatura… um dos meus piores, sinceramente falando, tanto que cheguei a deletá-lo de sites nos quais havia publicado.
A história em si era assim, ordinária, pouco original, sobre uma garota que morava sozinha em um apartamento e, ouvindo conversas entre vizinhos, soube que no prédio para o qual mudara havia ocorrido um suicídio. O morador, um alcoólatra solitário, teria escolhido, como método, o enforcamento, por ser bastante prático e rápido. Elisa começaria, então, a presenciar eventos paranormais, assim como aparições do suicida. O tormento se prolongaria até o dia em que, não sabendo mais como lidar com algo tão fora de sua compreensão, daria cabo da própria vida, enforcando-se.
Confesso ter vivido, enquanto escritor, uma forte crise criativa. Lia muito, na tentativa de encontrar alguma inspiração. Poe sempre fora minha principal referência, embora soubesse jamais chegaria sequer perto de sua genialidade. Com tantas leituras, e conhecendo tantos autores, conheci histórias fantásticas assim como, no outro extremo, medíocres. Sempre tive medo de pertencer ao segundo grupo, e a história de Elisa era exatamente assim, um amontoado de clichês e total falta de originalidade.
Mudei-me de uma casa para um apartamento quando passei a morar sozinho. Sempre morei em casas porém, depois da separação, a ideia de um apartamento tornava-se mais cômoda e prática. O prédio era antigo, sem elevador, afinal eram somente quatro andares. As escadarias que davam acesso aos apartamentos eram mal iluminadas, e as paredes revestidas de pastilhas num tom creme bastante agradável, pelo menos para mim. Um corrimão de boa madeira parecia ser parte original da obra. Às vezes, pertences de vizinhos podiam ser vistos largados ali, como bicicletas ou pedaços de mobília, ou até mesmo uma bola de futebol, rolando degraus abaixo.
Os cabelos negros e longos poderiam ser encontrados dentro de uma infinidade de filmes de terror, principalmente aqueles com orçamentos baratos, assim como a pele clara e o corpo magro, alguns diriam até esquelético. Assim era Elisa. A morbidez de suas formas, intencionais para dar mais clima ao conto, foram mais um detalhe da minha incompetência para criar uma história original. As luzes que piscavam, sugerindo um iminente susto, passaram a sair da ficção e acontecer sempre que eu me dirigia, ao longo do corredor, até minha porta. Conversei com o síndico, o qual sempre prometia daria um jeito. Algumas vezes, enquanto acertava a chave na fechadura, percebi uma sombra, um movimento, dentro do apartamento. Assim como Elisa fazia, sempre fui de deixar uma luz acesa, simulando haver alguém em casa e, assim, afugentando ladrões. Mas quando adentrava, nada lá havia. Passei a experimentar as sensações de pânico que Elisa sentia. Toda a catarse que tentava transmitir aos leitores passava a ser vivenciada por mim. Houve noites em que fui despertado pela televisão que ligava sozinha, num volume bastante alto, exatamente como acontecia com Elisa. Impossível não lembrar de trechos da trama que eu mesmo escrevera, afinal se desenhavam com uma semelhança incrível. O interfone que era acionado, sempre às 23h, era outra similaridade. Assim como em meu conto, nenhuma voz fazia-se ouvir, além da nossa.
Resolvi sair de lá. Era óbvio que assim o deveria. Não me encontrava, ainda, a ponto de questionar minha própria sanidade, mas pensava que aquele turbilhão de coincidências poderia não me fazer bem e, sabendo do desfecho da história que eu mesmo criara, deveria ser precavido e não esperar por mais semelhanças entre a vida real e a ficção. Estava decidido, e me mudaria tão logo fosse possível.
A folha morta de outono nos faz lembrar da brevidade das coisas.
Assim que o caminhão de mudanças estaciona em frente ao prédio, alguns homens descem e põem-se a carregar móveis e caixas. Os itens mais leves já se encontravam na calçada. Trabalho difícil com os móveis e eletrodomésticos maiores, tendo como acesso ao apartamento somente lances apertados de escadas. Homens suados, embrutecidos pelo trabalho pesado, no entanto rapidamente dariam conta de retirar toda a mobília.
A tampa traseira do caminhão já estava, finalmente, sendo fechada. Simultaneamente a um grito de criança, uma bola de futebol rola discretamente até a sarjeta. Tenho a impressão de que a voz infantil dizia “esperem”. O menino corre até ela e a recolhe nos braços. O homem de feições ásperas e mal humoradas bate a tampa com certa brutalidade, fechando-a definitivamente. Enfim, o menino ouve o chamado da mãe para que entre logo no carro. Parece hesitar, abraçado à bola de futebol. A tarde começa a cair, pois estamos no inverno e escurece cedo por aqui. No semblante do menino de sete anos, um olhar intrigante, enigmático, e que sugere alguma melancolia é dirigido até a janela na qual, imóvel e absorto em pensamentos, me encontro.
ESCRITO POR: Sergio Kuns