Quando criança, muitos causos escutei na localidade onde morava mas, mesmo ainda muito jovem, jamais acreditei nas histórias incríveis que ouvia, já que a pequena população local era basicamente formada por pessoas bastante simples, ignorantes, grosseiras, e que faziam uso sem nenhuma cerimônia de toda e qualquer cachaça que se pudesse ter por perto. A rotina desse povo se dava entre atividades de subsistência e conversas regadas a muita pinga e, vez ou outra, festas na pequena igreja, geralmente culminando com alguma briga de facão ou foice para manter a fama da região. Cresci em meio a isso.
Eu mesmo não acreditaria no causo que passo a narrar agora, leitor, se não tivesse presenciado alguns desses fatos e, posso dizer, ter tomado parte neles.
Pedro Cabeludo era bastante conhecido na região pelas histórias que contava. Dizia já ter falado com alma penada, dizia já ter visto um lobisomem, Dizia que conversava, por cima da cerca, com o bode da propriedade vizinha, e outras coisas do tipo. Sempre bastante bêbado, jurava pela alma da mãe morta serem todas verdadeiras aquelas histórias.
O povo parava para ouvir. Alguns riam, outros ficavam com medo, realmente acreditando naquilo que até então eu sempre acreditara serem apenas lorotas de um pobre coitado que mal sabia ler e escrever.
Eu tinha dezesseis anos. Naquele dia, eu e meu pai esperávamos o ônibus para ir à vila. Como de costume, meu pai jogava cartas na venda ao lado da estrada enquanto eu tomava um refrigerante. Fazia muito calor. Entre os homens que jogavam cartas estava Pedro Cabeludo. A garrafa de aguardente já estava pela metade e as conversas seguiam animadas. Em determinado momento alguém comentou que havia um prêmio da loteria que estava acumulado. Não lembro se comentaram exatamente qual seria o valor, mas era bastante alto. Pedro Cabeludo riu dizendo que se quisesse ganharia aquele prêmio, pois naquela noite estaria bastante propício a encontrar o cão na estrada e, então, poderia fazer um acordo com ele: o prêmio por uma alma. Ali bem perto havia realmente uma encruzilhada, daquelas que caberiam perfeitamente num filme de terror, e Pedro Cabeludo sempre voltava tarde para casa, geralmente embriagado. Entre as histórias que contava, podemos incluir uma em que ele dizia ter visto o tinhoso naquela mesma encruzilhada.
— Mas ôme do céu, intão ocê vendia tua arma em troca desse dinhero?
A pergunta do meu pai hoje me soa tão ingênua… se ele venderia? Me parece mais estranho que alguém quisesse aquela alma… o que poderia valer? O que faria o diabo com uma pobre alma daquelas?
— Pois si eu vê o cão hoje na estrada eu faço o trato e semana qui vem tô rico.
Como de costume, a maioria dos presentes riu. Lembro que uma menina, talvez nove ou dez anos, começou a chorar, sendo repreendida pela mãe que estava interessada na conversa daqueles homens.
— Então tá feito… hoje falo com o cão e amanhã faço a fezinha. Daí quando ganhar o prêmio ocêis tudo vão creditá ni mim.
Ainda bem que o ônibus chegou, pois aquela prosa não me agradava nem um pouco. Seguimos em direção à vila enquanto os demais continuaram o carteado.
Os dias se passaram e, na pequena localidade de três mil habitantes, logo espalhou-se a notícia de que o prêmio acumulado havia saído para a única lotérica da vila. Um único apostador levaria o vultoso prêmio, e rapidamente começaram as especulações de quem seria. Alguns poucos (eu incluso) lembraram da conversa na venda. E teria como não se lembrar daquilo?
Nas semanas que se seguiram, Pedro Cabeludo não foi visto. Alguns disseram que ele teria viajado com o cartão premiado para outra cidade, a fim de receber o dinheiro longe das vistas de tanta gente curiosa e invejosa. O dono da lotérica confirmou que Pedro realmente fez uma aposta na véspera do grande sorteio. Em meio a tantos boatos, ninguém sabia do Pedro afinal.
Passaram-se meses, a vida seguia seu ritmo lento e maçante. Eu voltava da lida, naquele dia sozinho , pois meu pai estava acamado recuperando-se de uma pneumonia. Já era noite e eu nem precisei da lanterna pois a lua cheia permitia ver com perfeição a estreita estrada que me levaria para casa.
Subitamente, quando me aproximei da encruzilhada, lembrei do Pedro Cabeludo e das conversas sobre o acordo com o cão. Aquela lembrança não me deixou muito confortável. Mas meus pensamentos foram subitamente interrompidos por vozes, bastante próximas. Cem metros à frente, talvez menos, percebi dois vultos parados, conversando. Ainda não conseguia ouvir o que diziam, mas fui me aproximando da dupla. Cheguei bastante próximo para reconhecer a voz de Pedro. Não consegui reconhecer quem com ele conversava. Curiosamente, quando estava a apenas alguns passos, percebi que minha presença estava sendo totalmente ignorada. Nenhum dos dois homens sequer voltou-se na minha direção.
— Amigo, não existe isso de “eu estava brincando”
— Má é verdade… sabe como é… conversa de bar…
— Ah claro… mas você foi receber o prêmio não foi? E agora vem com essa?
O que me chamou a atenção no desconhecido foi principalmente a forma como falava, como colocava bem as palavras. Um contraste gritante entre a fala do Pedro que, naquele instante, já parecia bastante nervoso.
— Um jogo… proponho um jogo… você deve vencer dois homens num jogo de cartas e então eu darei a esses homens a oportunidade que dei a você.
Ambos ficarão ricos, como você hoje é, mas serão meus. E você empobrecerá da noite pro dia, tornando-se mais miserável do que já era, e também doente. Sua alma pouco vale mesmo, você não passa de um traste covarde.
A proposta não era boa para Pedro… jamais venceria alguém nas cartas, pois era péssimo jogador… e ainda que ganhasse, ficaria com a alma, porém mais pobre do que antes? Continuei atento à conversa, afinal eles continuavam me ignorando.
— I si eu perco nas carta?
— Então meu amigo…não tem jeito… vou ter que ficar com essa alma covarde e inútil… até torço para que ganhe de pessoas com algum valor…
Então Pedro Cabeludo e o diabo estavam ali, na minha frente, numa encruzilhada, em noite de lua cheia, negociando almas? Senti de repente um mal-estar e acredito ter desmaiado, não sem antes perceber que aquele a quem deduzi ser o cão finalmente voltou o olhar em minha direção.
Acordei num hospital, completamente desorientado, e logo me disseram que, como não chegava em casa, meu pai, mesmo doente, foi me procurar na estrada e me encontrou caído. No início, ele pensou que eu tivesse sido atacado por alguém, ou atropelado, mas eu não tinha nenhum ferimento. O que mais intrigava a todos, incluindo os médicos, é que eu havia ficado dois meses desacordado, num estado que caracterizava o coma. E então, de repente, acordo como se tivesse apenas dormido algumas poucas horas.
Eu já era esperto o suficiente, apesar de jovem, para saber que não estava em um hospital qualquer. Era só olhar como tudo era bonito, novo, bem cuidado… bastante diferente dos quartinhos cheirando a urina e mofo do único hospital da vila, sempre caindo aos pedaços. E o que dizer de tantos médicos e enfermeiras ladeando meu pai, como se, pelo menos naquele momento, ele fosse uma pessoa importante? Mas papai parecia muito feliz com o meu despertar, afinal não parava de sorrir, ostentando os belos implantes que lhe deram o lindo sorriso que jamais sonhara ter na vida.
ESCRITO POR: Sergio Kuns