A gargalhada estridente ecoa pelo salão repleto de figuras abastadas pela sorte. O vozerio foi provocado pela tirada sarcástica de algum colecionador de artes esnobe, envaidecido pela atenção que recebe.
No amplo salão, janelas enormes estão cobertas por grossas cortinas cor vinho e lustres lindíssimos pairam como uma chuva de cristal sobre a cabeça dos convidados. A galeria está recebendo nesta noite a exposição artística do famoso pintor J. J. Marcell.
Em todas as paredes, quadros óleo sobre tela, estão expostos. Ricas molduras, entalhadas com esmero, adornam as pinturas que, a primeira vista, causam asco. As imagens abusam dos tons rubros. O artista, de talento inconteste, utiliza muito o vermelho vivo para expressar o terror da morte. O temor que sentimos pela certeza da própria extinção inspira o artífice.
Homens, mulheres, e às vezes, crianças, aparecem nas telas com o corpo dilacerado. Porém, o repúdio inicial que tais imagens provocam, são substituídas pela admiração da habilidade artística de Marcell. A composição dos elementos e cores, o equilíbrio, as linhas, tudo é perfeito. Até a crítica especializada, sempre tão dura com iniciantes, se rendeu a capacidade artística do pintor.
Em um dos cantos da galeria está um enorme quadro que toma conta da parede. Na tela se reproduz a cena em que a cabeça de um homem, com uma expressão de horror nos olhos, está colocada sobre um pedestal no meio de uma sala. No chão, vísceras estão espalhadas dentro de uma poça de sangue.
Um homem está parado na frente do quadro. Marcell admira sua obra prima. Sorri satisfeito com o sucesso da exposição. Pessoas passam despreocupadas à sua volta. Às vezes, um cumprimento e um sorriso. O pintor segura um copo cristalino com gelo, cheio de Whisky Blue Label e, distraído, observa a movimentação.
Nesse momento sente um toque em seu ombro. Ao seu lado está um jovem sorridente que lhe estende a mão. O rapaz se apresenta. É mais um admirador que se diz também artista. Exibido e falante, mostra que conhece toda a carreira de Marcell. Trata-se de um grande fã. Os dois entram em uma animada conversa sobre seus trabalhos.
Marcell se interessa pelo jovem de belos olhos e corpo esguio e o convida a conhecer outras obras, ainda inéditas, em seu apartamento. Chegam ao majestoso edifício na parte nobre da cidade. O primeiro beijo acontece ainda no automóvel. No elevador trocam mais carícias até adentrarem na luxuosa moradia.
O jovem se admira com o bom gosto do artista. O local está repleto de belas esculturas, pinturas de outros artistas e móveis de antiquário. Sente-se feliz por estar com seu ídolo. Marcell abraça o jovem e o beija apaixonadamente. Os dois se deitam no tapete no meio da sala diante de uma bela lareira.
Marcell se ajoelha diante do rapaz que está deitado à sua frente, encara sua conquista, sorri… e lhe atravessa o crânio com um espeto de metal que estava ao lado da lareira. O pintor se levanta, em seguida, senta em uma cadeira e observa pacientemente o sangue escoar do ferimento na cabeça do jovem e tingir lentamente sua tapeçaria.
O artista admira a cena enquanto uma lágrima lhe escorre do canto do olho.
_Lindo! Exclama com emoção sentida.
Então vai até seu ateliê e apanha uma tela em branco. Aproxima-se do corpo ainda quente e monta seu cavalete onde apoia a tela nua. Retira a paleta de cores e o pincel e inicia seu trabalho.
O jovem ainda treme em agonia, seus olhos encaram o assassino sentindo a terrível dor da morte em todo o ser e assim, vê a escuridão descer pouco a pouco, envolvendo-o, até não restar mais nada.
Por Aldo Almeida
