Pedro e Antônio foram criados na mesma rua, ao fim da qual havia um pequeno cemitério. Pequeno mesmo, assim como a cidade, que não passava de mil habitantes.
Costumavam brincar por lá durante o dia, apesar das advertências das mães. Elas sabiam respeitar o campo santo e não gostavam nem um pouco de ver os meninos chegarem em casa carregando as flores que tinham surrupiado de um enterro.
Eles nem ligavam. À luz do dia, o cemitério parecia mais um parquinho cheio de cruzes brancas. Volta e meia derrubavam uma, enquanto brincavam de pique.
À noite, no entanto, não se aventuravam por lá. Todo mundo sabia que as almas penadas acordavam quando os vivos iam dormir.
Quer dizer… não se aventuravam enquanto ainda tinham uns dez, onze anos. Assim que começaram a crescer um pouco mais, foi dando aquela vontade doida de experimentar coisas novas. E desafiar o medo é uma delas. Sentir até onde vai o próprio pavor, o coração disparado, a respiração acelerada até quase não caber mais nos pulmões, os olhos arregalados a ponto de pularem para fora, até dar uma vontade de rir e gritar ao mesmo tempo.
Aos poucos, começaram a explorar o cemitério ao anoitecer. Pedro, que sempre foi o mais medroso, mal conseguia permanecer ali dois minutos e já queria voltar. Tirando uma lâmpada meio mortiça pendurada acima do portão, não havia luz nenhuma lá dentro. Era preciso acostumar os olhos à escuridão. Só então, conseguiam enxergar alguma coisa, mesmo assim apenas sombras. Mas o pior era o silêncio absoluto, que fazia com que qualquer ruído parecesse imenso: mosquito zumbindo, rato passando, sapo coaxando, vento uivando, folhas de árvore farfalhando.
Antônio também morria de medo. Mas gostava da sensação. Um dia, tropeçou numa cruz que ainda não tinha tido tempo de ficar bem agarrada no chão. O pé dele enganchou na madeira e ele caiu de bruços na terra fofa e úmida, que tinha sido posta ali naquele dia. Pedro, tonto de pavor, tentou agarrar o amigo e, na escuridão, acabou cravando as unhas das mãos geladas em seu tornozelo.
Antônio nem teve tempo de pensar, foi no reflexo. No que sentiu a mão nervosa tentando agarrar seu pé, desferiu um coice de arrancar até defunto da cova. Acertou direto no queixo de Pedro.
Na escuridão e no susto, nenhum dos dois sabia direito o que estava acontecendo. Só que era preciso sair dali o mais rapidamente possível. O cheiro da terra revolvida parecia cada vez mais forte. Antes que mais alguma coisa acontecesse, conseguiram se levantar e correr.
Só ao chegar à rua, puderam compreender o que tinha de fato acontecido. O queixo aberto de Pedro não deixava nenhuma dúvida com relação à assombração que tinha tentado agarrar o amigo.
O problema é que, a partir daquele dia, Antônio ficou impossível.
— Cara, você viu só? Meti o pé na cara da alma penada!
— Alma penada coisa nenhuma, idiota. Você deu um coice na minha cara — retrucava Pedro.
— Mas eu achava que era uma assombração, não achava? E se fosse tinha dado um coice nela do mesmo jeito.
Pronto. Ninguém segurava mais o convencimento do cara. Agora, já acreditava — e contava para quem quisesse ouvir — que foi mesmo a mão do defunto enterrado naquele dia que tinha agarrado seu pé. Desfilava pela escola, todo herói e, a cada relato, aumentava um pouco a história. Tinha dado até para ver um pouquinho da cara do morto, com os olhos já meio furados de vermes e os cantos da boca esverdeados. As unhas dele tinham crescido depois da morte e estavam mais compridas que as de uma mulher.
Pedro já estava cansado daquele falatório. Dias depois, estavam novamente os dois passando diante do cemitério por volta das onze horas da manhã. Chegava um enterro novo.
— Vamos lá ver? — chamou Antônio.
Pedro concordou. Era uma noiva, ainda vestida de branco. Tinha morrido no dia do casamento, antes de começar a cerimônia. Resolveram acompanhar o féretro, só por curiosidade e porque a falecida era linda.
O caixão já tinha baixado à sepultura, e o coveiro jogava terra por cima, quando um rapaz transtornado, provavelmente o noivo, deu um passo à frente e jogou a aliança dentro da cova.
Sem se importar com isso, o funcionário municipal continuou seu serviço.
Pedro e Antônio ainda ficaram por ali um tempo, comentando o jeito das pessoas e fazendo piada até que todos se foram. Também já se preparavam para partir quando Pedro viu uma coisa brilhando ao pé da cruz branca. Chegou mais perto e constatou: era a aliança que tinha ficado ali, enterrada só pela metade.
Mais tarde, já na escola, Antônio sugeriu:
— Vamos voltar lá e pegar a aliança? Aquilo é ouro. Dá pra vender.
Mas Pedro, já cansado das exibições do amigo, teve outra ideia.
— Hoje à noite, você vai buscar.
E completou:
— Sozinho.
— Que é isso, cara, tá brincando?
— Ué, você não é o herói que chutou a cara do defunto recém-enterrado? Não é o destemidão do pedaço? Pois vai lá à noite. Vou avisar o pessoal. Dessa vez, você vai ter platéia de verdade.
Antônio ainda tentou escapar. Mas não teve jeito. Pedro já estava convocando a turma para o espetáculo.
Dez para a meia-noite, cinco colegas, Pedro entre eles, esperavam Antônio na porta do cemitério. O menino não se atrasou. Afinal, agora não podia voltar atrás. Além de mentiroso, ia ser chamado de covarde.
Passou pelo grupo com um olhar superior e mergulhou na escuridão, morto de medo.
Por sorte ou azar, a lua estava quase cheia. Não estava tão escuro como da outra vez. Era melhor para enxergar o caminho e chegar mais rapidamente à sepultura da noiva. Mas, por outro lado, a luz mortiça da lua jogava uma luminosidade sobrenatural por cima dos túmulos e das cruzes brancas. E, desta vez, Antônio estava sozinho. Pedro tinha ficado com o grupo esperando por ele no portão do cemitério.
De onde estava, ainda podia ouvir ao longe as risadas dos companheiros. No entanto, com o vento e o silêncio da noite, as vozes lhe chegavam distorcidas, como se viessem mesmo de outro mundo.
Decidiu ser rápido e não desviar o pensamento do seu objetivo. Caminhou até a sepultura da noiva e logo viu o anel.
Seria impossível não vê-lo. Embora a luz da lua fosse pálida, a aliança brilhava como se refletisse o sol. Daria para encontrar o lugar guiado apenas pelo clarão. Sem nem pensar direito no que fazia, estendeu a mão e pegou a joia.
O problema é que os meninos viam tudo de longe. E Mariana, uma das meninas do grupo, resolveu fazer uma gracinha. Engrossou a voz e disse:
— Antônio, me dá seu dedinho que vou pôr a aliança nele.
Era uma piada. Mas, com a distância, o silêncio e o vento leve da noite, o som chegou distorcido aos ouvidos de Antônio. Parecia mesmo que a noiva defunta falava com ele.
Todo o pavor que tinha controlado até aquele momento eclodiu como uma bomba de adrenalina. Só não berrou porque a garganta estava tão contraída que nenhum som sairia dali. Mas correu, correu como se tivesse mil pernas e uma só mão — fechada com força sobre a prova de sua valentia.
Chegou ofegante ao portão, olhou para o grupo e estendeu a mão para exibir a comprovação de sua coragem. Mas a mão estava vazia.
Na correria, tinha perdido a aliança.
No fim das contas, o passeio macabro terminou em risada. Antônio sabia que seria o alvo de chacotas por algum tempo. Mas nem se importava tanto assim. Só queria chegar em casa, dormir e esquecer.
No começo, não pareceu tão difícil. Sua mãe já dormia, mas tinha deixado um lanche sobre o fogão. Aos poucos, a sensação do leite morno descendo pela garganta foi reduzindo a velocidade das batidas de seu coração e o sono foi chegando.
Teve a sensação de adormecer antes mesmo de botar a cabeça no travesseiro.
Subitamente, acordou no meio da noite, totalmente desperto. O quarto estava gelado, o que não era comum naquela época do ano. Não havia vento, a janela estava fechada. Ainda assim, a temperatura caía a cada minuto, a ponto de provocar calafrios.
Então, veio o medo. Veio concentrado, como se todo o pavor das aventuras da noite lhe chegasse de uma só vez. Sentiu-se observado e fechou os olhos com força. Sabia o que veria se os abrisse. Tinha certeza. Era ela, a noiva. Podia sentir sua presença, seus olhos vazios cravados nele, seu corpo imóvel de pé no quarto.
E, desta vez, não era uma brincadeira da Mariana. Era a voz da morta mesmo que se fazia bem audível.
— Devolva minha aliança.
Assim como chegou, a aparição partiu. No minuto seguinte, o quarto já recuperara sua temperatura e tudo parecia tão completamente normal que Antônio chegou a acreditar que tinha sonhado. Logo, seus olhos ficaram pesados e voltou a mergulhar no sono.
Procurou Pedro logo na manhã seguinte e contou-lhe tudo. O amigo não levou a história a sério.
— Você deve ter sonhado. Do jeito como saiu apavorado do cemitério…
— Pode ser. Mas eu preferia encontrar logo o tal do anel e devolver para a moça. Sabe como é…
Pedro riu. E, por via das dúvidas, resolveu acompanhar o amigo até o cemitério. Afinal, a manhã estava linda, ensolarada. E eles não tinham mesmo nada mais interessante para fazer.
O problema é que nem a luz do sol ajudava. A aliança tinha desaparecido. Vasculharam tudo, refizeram dez vezes o caminho que Antônio percorrera na noite anterior e nada. Nem sinal de anel.
À noite, Antônio estava inquieto. Tomou um chá de capim-cidreira para acalmar e foi para a cama. Assim como na noite anterior, dormiu rapidamente.
Mas, como na noite anterior, despertou antes da madrugada. O mesmo ar gelado em seu rosto, a mesma certeza de que havia uma presença em seu quarto, a mesma convicção de que era a noiva e a mesma voz.
— Devolva minha aliança!
Na manhã seguinte, acordou exausto. Pedro notou o abatimento do amigo.
— Aconteceu de novo, cara.
— Não é possível.
— É. E dessa vez não foi sonho. Foi a defunta mesmo.
Os dois voltaram ao cemitério e novamente perderam o dia tentando encontrar a aliança. Impossível. Parecia que ela havia sido tragada pela terra.
A aparição retornou por mais quatro noites seguidas. Sempre igual. Os mesmos olhos vazios, a mesma boca que não se mexia enquanto falava, as mesmas mãos caídas ao longo do corpo. Finalmente, na sexta-feira à noite, a noiva disse:
— Se você for até a minha cova amanhã à meia-noite e me pedir desculpas, prometo que não volto nunca mais. Mas vá sozinho.
Desta vez, Antônio a viu desaparecer lentamente, enquanto o quarto retomava sua temperatura habitual. E decidiu ir.
Na noite seguinte, cumpriu o prometido. Dirigiu-se sozinho ao cemitério, enfrentou a escuridão e o pavor e chegou ao local do encontro marcado.
Realmente, pretendia pedir desculpas à noiva. Além disso, pensava em rezar também alguns padre-nossos e ave-marias como garantia. Mas, assim que se aproximou da sepultura, sentiu o já conhecido ar frio gelar sua espinha. Não teve coragem de olhar para trás. Sabia que ela estava ali e que não o deixaria fugir.
Queria rezar, queria pedir desculpas. Mas a garganta se apertava de tal modo que não permitia a passagem de som nenhum. Sufocava de pavor. Queria falar e não podia, queria gritar e não podia, queria respirar, mas até isso era impossível.
Então, correu. Correu de olhos fechados para não ver o que sabia que estava ali. Correu tropeçando, enlouquecido, estendendo os braços para a frente como se pudesse agarrar uma salvação. Correu sabendo que nunca mais conseguiria dormir.
Subitamente, sentiu que seu pé se prendia em alguma coisa e, no momento seguinte, seu rosto estava mergulhado num monte de terra recém-revolvida. O cheiro da morte entrou profundamente por suas narinas. Queria se levantar, mas o pavor o imobilizava. Dobrou os joelhos, tentando ficar de gatinhas, mas um puxão forte o derrubou novamente de bruços. Foi então que ouviu um baque surdo e sentiu uma dor terrível no dedo anular da mão esquerda. Em seguida, percebeu que a criatura tinha partido. Uma paz imensa tomava conta do ambiente. Os mortos dormiam seu sono infinito, e Antônio já conseguia se mover.
Levantou-se devagar e olhou para a mão esquerda. Seu dedo tinha sido decepado. Embrulhou a mão ensanguentada na camisa e foi andando lentamente para casa.
Pela primeira vez em muitos dias, sentiu que dormiria sem sobressaltos. Deixou que sua mãe cuidasse do ferimento e lhe desse um copo de leite morno. Foi para a cama e logo adormeceu, exausto.
No meio da noite, no entanto, seus olhos se abriram como se alguém tivesse ordenado que fosse assim. A mulher estava parada à sua frente.
No entanto, agora, ela sorria. Um sorriso vazio, isolado do resto do rosto, que permanecia inexpressivo. E, desta vez, a mão esquerda não estava caída ao longo do corpo. Acenava para ele, como se desse um “tchauzinho” em câmera lenta.
Antônio não pôde deixar de notar: o dedo esquerdo da noiva exibia uma reluzente aliança de ouro.
Por: Rosa Amanda Strausz