Ao cair do outro lado do muro, ele pensou duas coisas: que a altura era bem diferente do lado de dentro e que, apesar de estranho, era uma excelente ideia se esconder no cemitério. Seria pouco provável alguém imaginar que fosse se esconder ali.
O tornozelo direito doera com o impacto da queda. A fuga pelo furto fora um vexame imenso. Um telefone celular que nem era tão bom quanto pensara e o resultado tinha sido uma multidão no seu encalço. Correra como nunca, temendo levar um tiro no rabo. Tivesse armado a coisa seria diferente, pensou ele.
Tinha corrido uns duzentos metros, no meio das pessoas, quase sido agarrado, atravessando ruas, passado na frente de automóveis buzinando e freando. Chegou quase sem fôlego aos fundos do cemitério. Tinha parado, olhado para os lados, corrido até o muro, saltado e, num impulso, se içado até o topo. Soltou-se, não calculando direito a altura, o impacto no chão causando um pequeno incomodo no tornozelo.
Agora olhava os túmulos naquele fim de tarde e pensava. O ideal era dar um tempo ali, ir andando devagar até o portão e sair de fininho. Mas era melhor esperar um pouco. Se quando estivesse saindo desse de cara com alguém da multidão que o havia perseguido, as coisas seriam complicadas.
O tornozelo doía pouco, mas não conseguiria correr como antes, tinha certeza. Andou tranquilo. Chegou até uma das vias, caminhos que cruzavam o cemitério em toda sua extensão. Seguindo qualquer um deles, chegaria à capela que ficava na entrada. O cemitério era imenso. Dali de onde estava, seguindo qualquer das vias, teria que percorrer uns duzentos metros até a saída. Era melhor ir com calma, ir devagar, ziguezagueando por entre os túmulos, fingindo ser um visitando caso chamasse a atenção de alguém.
Saiu do caminho e tomou uma das vias estreitas, entre os túmulos. Havia mausoléus verdadeiramente magníficos. Distraiu-se olhando as datas de morte e nascimento nas placas dos túmulos. Continuou em direção à saída, o tornozelo começando a incomodar um pouco mais. Baixou-se para examina-lo. Quando levantou a vista viu algo aterrorizante: um rosto escuro o observava por detrás de um túmulo. Deu um grito de pavor e quase caiu para trás. O rosto sumiu.
Ele se afastou dali, andando e olhando para onde a aparição surgira. Era melhor ir embora. Não demoraria a escurecer e isso não seria nada bom. Foi andando devagar com receio do rosto que o espreitara. Começava a achar tudo imaginação quando um vulto enorme passou correndo na sua frente. Apressou o passo, olhou para trás e viu várias criaturas espreitando por trás dos túmulos, espreitando e rindo. Um riso tolo e infantil, mas ao mesmo tempo maldoso. Tentou correr, mas a dor no tornozelo o impediu.
Foi mancando, a dor subindo pela perna, doendo muito. Ao chegar perto da capela na entrada, viu uma viatura da polícia pelas grades do portão. Procuravam por ele? Parou, voltou e meteu-se no meio de uma viela, entre jazigos e tumbas de variados tamanhos. Ficou ali durante algum tempo, agachado. Foi então que viu surgir uma figura sem rosto, carregando flores. Tinha cabelos compridos, em tranças caídos de um lado e outro. Uma boca surgiu naquela massa disforme. Sorriu, exibiu enormes dentes grandes, amarelos e começou a rir escandalosamente.
Ele correu, o tornozelo matando-o de dor, topou num pedaço de cimento que brotava do chão, caiu e o mundo tornou-se escuro e silencioso… Desmaiou? Ao abrir novamente os olhos, viu que já estava escuro. Percebeu que seu tornozelo estava bastante inchado. Ficou em pé, começou a caminhar com dificuldade. Gemendo, chegou ao portão… Estava trancado, começou a chorar, o rosto de encontro às grades frias… Tudo por causa de um maldito celular, era isso? Nesse momento percebeu que estavam à sua espreita. Por que era perseguido?
Começou a escalar o portão, a perna avariada trazendo dificuldade. Precisou de bastante esforço, olhou para baixo e viu a multidão sórdida, terrível e estranhamente infantil e feminina. Mais cedo fora caçado por pessoas, o que era aquilo? Pareciam crianças das trevas! Voltou a se perguntar: tudo isso por um velho celular? Mas então veio a resposta na lembrança de sua vida pregressa.
Além de ladrão barato, era um ardiloso predador sexual. Maldição! Falou. Elas estavam ali! Enterradas! Tinha violado várias garotas desde que era adolescente e nunca fora descoberto. Aliás, vivia para aquilo, para se aproveitar delas. Não usava drogas como os outros malandros, não bebia e nem fumava. Gastava tudo com a simples sobrevivência para que pudesse continuar colhendo-as no caminho. Duas delas, mais afobadas, tinham-no obrigado a tomar uma providência maior. Estrangulara as duas irmãs. Nunca fora indiciado pelo crime. Meninas do bairro, pobres, andando à toa, perfeitas para ele. Era isso. E as meninas estavam enterradas ali, tinha certeza, podia sentir isso!
Suas forças falharam, não conseguia o impulso final para transpor o portão. As forças faltando, suado. Gemeu, olhou para baixo. Aquilo era seu castigo. Não pelo roubo, mas por ser um estuprador… Estuprador e assassino.
Começou a sentir as barras de ferro suadas, lisas sob seus punhos, sem forças, até que caiu no abismo curto e desenfreado, de encontro a um dos primeiros túmulos do cemitério. De peito sobre uma cruz que lhe penetrou 30 centímetros. E ele morreu olhando as duas meninas, para suas faces alteradas pela morte. Ao redor, outras almas infantis que habitavam o cemitério, vítimas de outros tarados como ele.
ESCRITO POR: Jorge Raskolnikov