Terror é minha paixão. Na ficção, é claro. Sou um velho padre que, nas horas de folga, tem o hobby de escrever. Minha especialidade são os contos. Também escrevo algumas crônicas, mas as histórias de mistério, suspense e horror fazem parte de minha vida desde que me conheço por gente, como dizem por aí. Estranho não? Um padre criando contos de horror.
Passo grande parte do dia aqui na Igreja da paróquia, assistindo ao povo e ansiando pela chegada da noite, momento em que sento ao computador e deixo a imaginação criar asas. Gosto de brincar com as figuras de linguagem, e imagino se a catarse pretendida acontecerá em meus leitores. Mantenho uma página na internet, na qual posto meus textos, e posso dizer que sou um autor bastante lido, embora não me considere profissional. Recebo comentários, na maioria das vezes positivos, e essa interação me motiva a escrever mais e mais. É claro que recebo críticas, afinal um padre contando histórias de fantasmas causa estranhamento. Às vezes, para não dizer toda noite, vou dormir bem tarde, pois perco a noção do tempo enquanto o som do meu teclado toma conta da pequena sala na qual me encerro.
Por mais interação com meu público leitor, tive a ideia de criar um concurso em meu site. Dentro do prazo de uma semana receberia, por e-mail, enredos de um conto de terror. A melhor ideia, por mim selecionada, se transformaria em uma história e, obviamente, teria na assinatura a coautoria. Postei a ideia no site. Estava empolgado com o projeto.
Nos primeiros três dias já havia recebido vários e-mails com sugestões. A grande maioria, tramas sem originalidade, amontoados de clichês e cópias de coisas que já existiam. Casas com fantasmas e exorcismos estavam entre os temas mais citados. Mas havia alguns enredos que poderiam ser aproveitados. De qualquer forma, ainda tinha mais quatro dias para receber outras sugestões.
No quarto dia, à noite, verifiquei decepcionado que, em minha caixa de entrada, só havia uma nova mensagem. Era um endereço de e-mail com caracteres aleatórios, letras e números, que não formavam sequer um nome que pudesse identificar quem o teria enviado. Quando abri a mensagem, não havia um “olá”, não havia nenhuma apresentação pessoal. Apenas um parágrafo que parecia ser, à primeira vista, um conto de horror. Ora… fui bem claro em minha postagem… eu queria o enredo, a trama, e eu emprestaria minhas mãos, minha habilidade, para transformá-la em uma história. Tal pessoa não teria entendido a proposta e enviou-me o início de um conto. Talvez tenha entendido que faria o primeiro parágrafo e eu o terminaria? Fechei o notebook e aproveitei para dormir mais cedo, pensando nas sugestões que tinha até então.
Quinto dia à noite. Era uma sexta-feira. Havia mais mensagens, pelo menos umas cinco. Voltei a ficar empolgado com o projeto, mesmo porque as ideias anteriores estavam um pouco desinteressantes. Eu precisava de algo realmente original, algo que, com a minha habilidade com palavras, se tornasse uma grande história. Entre os e-mails recebidos naquele dia, reconheci o mesmo endereço do dia anterior. Além de não entender a ideia do concurso, não leu a regra que dizia ser possível apenas uma participação por pessoa, pensei. Mesmo assim, cliquei e abri a mensagem.
Novamente, nenhum “boa-noite” ou coisa parecida. Sem nomes. Somente um parágrafo que reconheci não ser o mesmo do dia anterior. Lendo as primeiras palavras, percebo não ser início de um texto. Aquilo me deixou cismado e resolvi olhar a mensagem anterior que havia ignorado. Minhas suspeitas se confirmaram: o primeiro e-mail continha a introdução de um texto e, no segundo, a continuidade do mesmo. Então alguém queria me mandar um conto inteiro. Mas porque fazia-o de forma fracionada? Instigado, esqueci os outros e-mails e iniciei a leitura.
O texto em si era muito bem escrito. Aliás, eu diria ser impecável. Como hábito, procurei por erros de ortografia, concordância, digitação, mas, se algo assim havia, não fui capaz de perceber. Quem escrevia aquele conto entendia das coisas. Passei a me concentrar no mais importante: a trama.
Narrado em primeira pessoa, chamava-se As Vozes e tinha um eu-lírico feminino. Melissa era o nome da protagonista. Dizia ser uma garota de dezesseis anos. Excluída do círculo de amigos, na escola, por uma particularidade: ouvia vozes. Demorou um tempo para procurar a ajuda dos pais, pois temia que a considerassem louca. É claro que os pais a levaram a psicólogos e psiquiatras, mas nenhum diagnóstico foi conclusivo. Testes, muitos deles, descartaram ser esquizofrênica. Logo a notícia de que teria transtornos psiquiátricos se espalhou e, na escola e em sua rua, passou a ser vista como uma aberração. Hostilizada por uns, alvo de deboche de outros, ia seguindo um dia a dia de humilhações. As vozes que ouvia se intensificavam e davam estranhas orientações a ela.
— Caramba. – Exclamei assim que acabei de ler as duas partes que ela já havia enviado.
Podia não ser lá muito original, mas o autor escrevia bem e a trama se tornava interessante. Eu, antes de ser um escritor, era um leitor. E posso dizer que já havia sido “fisgado”, como costumamos dizer. Queria receber as outras partes, mas antes tive o cuidado de fazer uma busca na internet. Copiei alguns trechos da história e colei no Google. Aquela história já poderia estar publicada em algum site. A pessoa que me mandava poderia já ter feito isso ou, quem sabe, nem fosse a autora do texto. Nenhum resultado obtido. No máximo algumas palavras soltas. Aquele texto não estava ainda na internet. Isso me deixou mais intrigado.
Conforme imaginara, recebi, no dia seguinte, outra parte do texto. Três parágrafos. Seria a conclusão? O fim da história? Contos são, geralmente, textos curtos. Nenhum “boa-noite”, nenhum nome. Somente o texto.
As vozes torturavam Melissa. No início eram obscenidades às quais uma adolescente não deveria estar habituada. Depois passaram a ditar ordens. Além das ordens, ameaças de que, caso ela não as cumprisse, seus pais seriam, de alguma maneira, punidos. Como forma de testá-la, as vozes sussurraram em seu ouvido que ela deveria encontrar um animal, aquele que lhe fosse mais fácil, e decapitasse o pobre. Deveria fazer isso com uma faca, machado, enfim, com qualquer ferramenta que desse conta do recado. Ou isso, ou seria sua mãe a perder a cabeça. É claro que isso a deixou em pânico. Alguém ameaçava matar sua querida mãe. E havia uma ironia cruel nessa tarefa: Melissa sempre fora simpatizante da causa animal. Daquelas pessoas que não pisariam em uma formiga. Ela não sabia de onde vinham as vozes que sussurravam em seus ouvidos, mas elas brincavam de maneira sádica e cruel com a perturbada garota.
O texto prosseguia com a detalhada descrição da tarefa sendo cumprida por Melissa. Ela já acreditava que não tinha transtornos psiquiátricos e que as vozes eram reais. Cumpriu as ordens tendo como vítima um dos pombos que habitavam, às pencas, o barracão no qual um dia teria funcionado um curtume e hoje encontrava-se abandonado. Chorava copiosamente enquanto degolava o pobre animal. Pediu perdão à ave, uma, duas, mil vezes. Tinha sangue nas mãos e na roupa, então feriu-se, de propósito, com a faca, a fim de justificar o sangue. Diria qualquer coisa, que caiu e cortou o joelho, algo assim. Isso explicaria também ter chorado. Enquanto realizava a tarefa, ouvia risos insanos e histéricos.
Melissa, dezesseis anos. Tive um estalo e corri verificar o endereço de e-mail: [email protected]. Como pude ser tão distraído a ponto de não perceber que, no endereço de e-mail, havia sua idade? E as consoantes mls sugeriam o nome Melissa. Então quem estaria me mandando a história tinha um nome. Uma garota de dezesseis anos que escrevia um conto de terror na qual a protagonista teria seu nome e sua idade. É claro, isso eram apenas suposições minhas, apenas possibilidades. Qualquer um poderia criar o endereço de e-mail com dados da história, talvez para brincar comigo, me confundir, me fazer de bobo. Poderia tentar rastrear o endereço de IP do computador que me enviava os e-mails, mas achei que poderia ser de qualquer lan house, então deixei por isso mesmo.
Quando findou o prazo de recebimento, apenas postei em meu site que o prazo se esgotara e que, em breve, divulgaria o resultado. A verdade é que, desde que comecei a ler a história de Melissa, atormentada por vozes que sussurravam em seus ouvidos, sequer abri as outras mensagens. Esperava ansiosamente o dia passar para, à noite, ler os novos capítulos da trama. E começava a ter problemas de concentração no trabalho porque, além de querer saber a continuidade da história, eu tinha todo o mistério sobre quem estaria enviando aquela história. Seria uma jovem escritora de nome Melissa? O que a faria brincar comigo daquela forma, trazendo aquele verdadeiro enigma? Talvez até fosse alguém que eu conhecesse pessoalmente, que soubesse do meu hobby e do meu gosto por histórias de horror. Algumas vezes respondi ao e-mail, dizendo que estava gostando da história, mas gostaria de saber sobre o autor, ou autora. Nenhuma das minhas mensagens foi respondida.
Um novo capítulo! Ótimo! Ansiava por isso. Posso dizer que já me tornara dependente daquele enredo, e esperava que o mistério da autoria secreta fosse, enfim, revelado. No novo fragmento recebido, Melissa narra estar à beira da loucura. Tornara-se insuportável aos pais o seu comportamento e as coisas estranhas que fazia. A mãe, de formação religiosa e bastante supersticiosa, já pedia ao marido que procurassem um padre para exorcizá-la. Havia uma semana não comparecia à escola, e passava boa parte do tempo trancada no quarto. O relato de Melissa me deixava extremamente angustiado. Nunca fora de sequer lembrar de sonhos, mas passava a ter pesadelos e lembrava deles com incríveis detalhes. Em um deles, chegamos a conversar. Ela repetia, insistentemente, não ser louca, e dizia ter medo de ser internada em algum sanatório. Aquelas palavras me marcaram e tive um grande susto quando, no dia seguinte, lendo os novos capítulos recebidos, deparei-me exatamente com as frases que ela me dissera em sonho. Aquilo causou um forte impacto em mim. E como poderia ser diferente? Como uma coincidência daquelas seria possível? Apesar de lidar com o além nas histórias que escrevia, na vida real sempre fora muito prudente em relação a coisas assim. A própria Igreja testemunhara, ao longo da história, uma infinidade de fraudes, assim como patologias, casos de esquizofrenia, que eram confundidas com possessões demoníacas. Agora, eu tentava entender como as frases proferidas por ela em um sonho se repetiam, ipsis litteris, no capítulo novo que acabara de receber.
Minhas surpresas não cessaram. Em um novo capítulo, Melissa dizia estar no limite, e procuraria ajuda com mais alguém além de seus pais, que nem estariam ajudando tanto assim. Um padre, escritor de histórias de horror, bastante conhecido na internet. Talvez pudesse ajudá-la de alguma maneira. Ela falava de mim no texto? Com essa possibilidade na cabeça, outro estalo acontece: lembro da captura ao pombo no barracão que um dia teria sido um curtume e que, agora, encontra-se abandonado. Esse barracão existe, e fica a apenas cinco quilômetros daqui. Lembro do velho curtume e do mau cheiro que causava revolta nos moradores. Assim como o endereço de e-mail, como não percebi mais essa pista? Melissa existia, e estaria morando próximo dali…precisaria averiguar, ela clamava por ajuda, e eu teria que ser cauteloso. Começaria pelo barracão.
Naquele dia, deixei de lado os compromissos da Paróquia. Também não era dia de missa. Chegando em frente ao velho curtume, estacionei e fiquei um tempo dentro do carro, observando. Estava abandonado havia muito tempo, pelo menos dez anos. Parte do telhado estava destruído. Pombos tomavam conta da área. Lembrei do pobre que Melissa teria sacrificado em cumprimento às ordens recebidas. Olhei atentamente ao redor. Ela poderia morar em uma daquelas casas. Estaria apenas me contando uma história fictícia ou passava realmente por aquele tormento? Não tirava da cabeça as frases que ouvira, primeiro em sonho e, depois, no capítulo recebido. Estaria enlouquecendo… uma vida dedicada ao sacerdócio e nunca testemunhara casos de vozes e possessões… mas também não poderia negar que algo daquela natureza estivesse realmente acontecendo.
Disfarçadamente, saio do carro e me dirijo ao velho curtume. Talvez fosse psicológico, mas parecia sentir o característico e repulsivo cheiro de quando aquele lugar ainda estava ativo. Não há trancas na grande porta, que range quando a empurro. Está tudo muito sujo. Fezes de pombos por toda parte. Esperava encontrar, em algum lugar, marcas de sangue que indicassem a cruel tarefa que Melissa fora obrigada a cumprir. O lugar parece ter uma energia negativa, e não é por menos… seres vivos, inocentes, perderam a pele para que nós usássemos cintos, sapatos e jaquetas. O cheiro que em minha memória estaria marcado era, de certa forma, o cheiro da morte, da morte desnecessária, da morte sem razão de ser…
Então a vejo. Sentada a um dos cantos de uma sala suja, com as costas encostadas à parede. Veste calças jeans, camiseta e tênis. Está com o rosto voltado para baixo e os cabelos loiros cobrem suas feições. Eu tinha certeza que era Melissa, eu a havia encontrado. Ela soluçava. Em prantos, falava algo inaudível e só então percebi o estilete em suas mãos.
— NÃO!!!!!
Meu grito rasgou o silêncio do ambiente, porém foi inútil, pois o movimento rápido fez a lâmina afiada cortar tecidos e artérias.
— Você veio, padre…
Invisto em sua direção, já preparado para estancar, talvez com a minha camisa, aquele corte e, subitamente, uma espécie de flash me deixa momentaneamente cego e desorientado. Quando consigo vislumbrar novamente a sala e suas bancadas empoeiradas, não a vejo mais…não entendia o que tinha acontecido, apenas que não estava mais ali. Não havia uma gota de sangue no chão imundo.
Sinto o estômago embrulhar e saio cambaleando. Não consigo evitar e acabo vomitando sobre meus próprios pés. Sentia falta de ar.
— Precisa de alguma ajuda, padre? O senhor está bem?
De joelhos e limpando a boca com a manga do casaco, olho na direção da voz e vejo um menino, quatorze ou quinze anos, que demonstra preocupação com minha condição.
— Não, não…agora que vomitei vou melhorar… obrigado, rapaz!
— É o cheiro da morte, padre… esse cheiro impregnou o lugar e nunca vai sair daqui. Minha mãe sempre diz isso.
Parecia que teria lido minha mente. De qualquer maneira, parecia inútil continuar ali.
— Veio atrás dela, padre?
Aquela pergunta me causou calafrios.
— Como assim? Do que você está falando? — repliquei com a voz trêmula.
— A Melissa, padre. Ela fala comigo, sussurra em meu ouvido. Da mesma forma que ela ouvia vozes, eu a ouço. Ela me orienta sobre como mandar as mensagens ao senhor. Eu enviei aqueles e-mails. Ela dita e eu escrevo, palavra por palavra. Eu sabia que o senhor viria aqui hoje, ela me disse. Posso dizer que fui o instrumento para que vocês pudessem se conhecer. Espero que agora isso tenha fim. Tenho medo de contar a meus pais. Vão pensar que sou louco.
Sem o estranho sonho e a recente aparição, eu diria ter sido vítima de um trote por parte daquele menino de imaginação tão criativa. Mas sabia que ele dizia a verdade. Ninguém melhor que eu sabia, naquele momento, o que tinha acontecido.
Melissa precisava, mesmo na morte, de alguém que nela acreditasse. Em vida não teve. Foi hostilizada e ridicularizada. Os próprios pais não depositaram confiança em suas palavras, quando procurou ajuda. Tachada de louca, chegou ao extremo de, no mesmo barracão em que arrancara a cabeça do pobre animal, cometer suicídio, cortando os pulsos. Ninguém veio em sua ajuda. Esvaiu-se em sangue naquele chão imundo. Foi a única vez, o único momento, em que desobedeceu as vozes, que diziam para não fazê-lo. Isso teria acontecido havia cinco anos. O garoto dizia lembrar vagamente da menina estranha que perambulava, sem amigos, pelas ruas, falando sozinha.
— Padre… Melissa quer que o senhor conte sua história. Escreva o conto, padre, conte a história dela.
E assim o fiz. Escrevi em meu site o conto intitulado As Vozes. Escrevi não…na verdade apenas reproduzi os textos, impecavelmente bem escritos, que havia recebido. Não foi assinado em coautoria com Melissa. Dei a ela todos os créditos da história. O texto continha a advertência de ser baseado em eventos reais. Depois de publicar o conto, recebi muitas mensagens de gente que dizia lembrar da história da garota que se suicidara dentro de um curtume abandonado, igualmente abandonada por todos em meio a fezes de aves que ali faziam morada. Sua história tornou-se conhecida, como ela tanto queria. Tornei-me amigo do garoto, que hoje já é um homem. Sempre mantenho contato para saber sobre possíveis danos psicológicos que poderia ter sofrido. Ele diz nunca mais ter ouvido a voz que sussurrava em seu ouvido. Parece estar bem e segue sua vida, inclusive casou-se e, talvez, raramente lembre de Melissa. Já eu, não há dia que termine sem que a ouça sussurrar em meu ouvido um “Boa-noite padre, durma bem”.
ESCRITO POR: Sergio Kuns