O sobrenatural era mais absurdo do que se podia imaginar! Foi a conclusão que Carlos teve depois do episódio. Absurdo e completamente constituído de leviandade, um ilogismo contundente.
Ele havia nascido no Recife e, desde criança, ouvira falar das histórias assombradas da cidade. Chegara a dar uma lida no livro: Assombrações do Recife velho de Gilberto Freyre, o achando enfadonho e desnecessário. Do alto de uma inteligência acima da média, se perguntou porque as pessoas acreditavam naquelas coisas e, mesmo as que não acreditavam, referenciavam aquelas histórias. Pura besteira inventada por gente pobre, ignorante e cheia de superstição. Nunca na vida perderia tempo contando quaisquer daquelas lendas para um filho por exemplo.
Uma vez, no meio de uma bebedeira, tarde da noite, relembraram a história de Boca de Ouro. Suposta visagem com a aparência de boêmio que punha para correr homens que ousassem caminhar sozinhos à noite pelas ruas do Recife, ainda mais depois de uma noitada. A aparição era um misto de Zé Pelintra com morto vivo. Os dentes todos de ouro e um hálito de carne podre e enxofre. Obviamente que não ficou pensando nisso, descartando a narrativa como fizera com as outras.
Então, numa noite, saído de uma festinha com os amigos no bar, resolveu ir a pé para o apartamento de um primo que o oferecera guarida naquela noite. Cruzou a praça e, quando chegou na larga avenida, viu um sujeito todo de branco vindo em sua direção. Pelo que sabia, aquele não era um lugar perigoso, dado a assaltos, mas não podia se confiar nisso. Tratou de apressar os passos, entretanto, o outro foi igualmente rápido. Quando este conseguiu se aproximar:
— Tem fogo? – perguntou o sujeito com um cigarro na mão.
Ele vestia um terno branco, os sapatos caprichosamente engraxados e um chapéu Panamá inclinado que ocultava boa parte do rosto. Carlos disse que não fumava. Embora em noites de bebedeira, fumasse vários cigarros, mas não se considerava fumante e muito menos tinha cigarros. O homem de branco riu e afastou o chapéu para trás. A primeira impressão foi de que aquilo se tratava de uma brincadeira.
O sujeito tinha o rosto esverdeado, parte da bochecha e orelha carcomida como se fosse um cadáver. Mas nada que um maquiador mancomunado com algum tipo de brincadeira sinistra não fosse capaz de engendrar com habilidade.
— Não é engraçado! – falou Carlos.
O sujeito de branco gargalhou exibindo os dentes brilhantes, dourados… Boca de Ouro!
— Que brincadeira é essa?! – indagou e na mesma hora sentiu o fedor de carne podre misturada a algum componente químico.
Carlos correu. Agora tinha entrado com tudo naquilo, na lenda toda, nos que fugiam do Boca de Ouro. Mas, e se fosse uma brincadeira como suspeitara antes? Que se danasse, não ia ficar para ver.
Correu até doer-lhe o ventre, as pernas, ficar ofegante, até não conseguir mais. Parou e então viu a aparição ali, bem diante dele. Bem, não havia mais explicações lógicas! Aquilo estava acontecendo. Como? Não tinha ideia! Não fazia sentido. Aquelas coisas não podiam existir! Acabariam com toda a racionalidade que conhecia.
Boca de Ouro aproximou-se rindo e Carlos, fraco, sem fôlego, questionando o universo, desmaiou. Acordou no outro dia, ajudado por transeuntes, sob a luz da manhã. Um conhecido disse-lhe para ter cuidado com as bebedeiras, chegar a dormir na rua não era nada prudente.
Refeito, contou para o primo e amigos sua desventura. Sem exceção, pediram para que deixasse de troça e tomasse cuidado com a bebida. Carlos então se sentiu sozinho em sua miséria, na destruição do mundo em que acreditava. Examinou tudo sob os mais diversos ângulos não achando motivo para delírio. Nem sequer estava bêbado pra valer. Todo o absurdo era real.
Imaginava que se existisse um sobrenatural, seria algo organizado, discreto, nada espalhafatoso. Mas não, tudo era absurdo dentro de absurdo e ria dele. Talvez Boca de Ouro fosse exatamente isso.
O riso sobre certezas que descartam o inusitado, repetido pelos mais humildes que aceitam todo tipo de visagem e duendes sem preconceitos.