– Ei, você! Sai da minha cova!
– Hã!? Mas o que…
– A cova é minha, vamos, saia!
– Onde estou? Não enxergo nada.
– Anda logo, idiota, pula fora daí! Essa cova é minha!
– Por favor, pode me dizer onde estou e quem é que está falando comigo?
– Já disse, você está na minha cova! E eu sou o dono dela.
– Como assim, na sua cova? Mas que droga, eu não sinto o meu corpo.
– Como você é burro! Você está morto, palhaço!
– Morto? Eu? Quem é você? Apareça!
– Escuta aqui, hoje eu tô um nojo, não vou perder meu tempo falando com você, vamos, cai fora daí, sai da minha cova, agora!
– Tá, então me ajuda. Acende essa luz! Como que eu saio daqui?
– E eu vou lá saber? Eu já teria te chutado daí faz tempo! Não teria ficado horas aqui embaixo da terra esperando a donzela acordar.
– Horas?! Há quanto tempo estou aqui?
– Tempo o bastante para eu enjoar da sua cara amassada!
– Foi você que me colocou aqui? Maldito!
– Calma lá, meu cumpade. Eu jamais colocaria você na minha cova! Ela é minha! Só Minha! Escuta aqui, você está morto! Tá entendendo? Te enterraram, mortinho da Silva, só o bagaço. Agora sai da minha cova!
– Eu adoraria sair daqui, mas não posso! E que história é essa de que estou morto?!
– Sim, você está morto! E eu também estou, e essa cova era minha antes de te enterrarem aí.
– Tá certo! Cansei dessa palhaçada. Eu quero sair daqui!
– Escuta bem o que eu vou te dizer. Eu estava descansando em paz, curtindo a minha morte até você aparecer. Tiraram os meus restos mortais desta cova e eu fui transformado em uma espécie de espírito, acredito eu, e agora eu estou preso aqui no cemitério. Eu posso vagar por aí sem que ninguém me veja; posso atravessar paredes, pessoas ou qualquer objeto sólido, inclusive, posso descer aqui embaixo da terra, a sete palmos, que é onde eu estou agora enquanto falo com você.
– Estou realmente morto? Dentro de um caixão?
– Mas será possível? Você é morto, não surdo! É o que eu estou te dizendo faz tempo, vê se me ouve!
– Socorro! Socorro!
– Ninguém pode te ouvir, imbecil; ninguém além de mim.
– Por favor, me explica como tudo isso é possível, estou enlouquecendo!
– Pois então, eu acredito que essa cova é mágica, que esse pedaço de terra é sagrado, por isso continuamos conscientes mesmo depois de mortos, apesar de não conseguirmos nos mover ou respirar. Acho que essa cova armazena a nossa alma, mas o corpo já era, logo você vai ouvir os vermes te devorando.
– Então, isso é morrer? Ficamos conscientes dentro de um caixão, na escuridão, sem se mover e conversando com os mortos? Por que você quer estar no meu lugar? Você é maluco? Enquanto estou aqui apodrecendo, querendo sair, você tem a opção de vagar pelo cemitério, ver a luz do dia, ver as pessoas.
– Vem aqui ficar no meu lugar, seu desgraçado! Você acha que é fácil ficar vagando por aí? É um esforço danado! É cansativo! É preciso força e técnica para manter o corpo flutuando. Levei muito tempo para aprender isso! Quando tudo isso começou eu desci direto pra debaixo da terra e não parava de cair; caí tão fundo, mas tão fundo que levei horas pra controlar o meu corpo e poder subir de volta à superfície. Agora, eu não tenho um segundo de paz, se paro por um instante o meu corpo começa a descer, e se eu descer muito fundo posso ter que passar uma eternidade procurando o caminho de volta. Você não tem noção de como é extenso lá embaixo, parece não ter fim!
– Nossa! Não imaginava que era tão ruim assim. Olha, sei que está nervoso mas, eu não posso fazer nada, eu morri e fui enterrado aqui, não há nada que eu possa fazer.
– Tá, tá, já entendi, só preciso achar um jeito de te tirar daí. Quer um pouco de luz?
– Misericórdia! Não faz mais isso!
– Ah! ah! ah! Assustei você?
– Mas é claro, eu não esperava que fosse enfiar essa cara iluminada dentro do meu caixão.
– Ora, eu só quis me apresentar; sou tão feio assim? Devia ver essa sua cara amassada.
– Maluco! Faz alguns minutos que só enxergo a escuridão, e de repente me deparo com esse seu rosto cheio de brilho, você me assustou; e que brilho é esse? Você é mesmo um espírito?
– Eu não sei, depois que fui expulso da minha cova fiquei assim, com esse brilho azulado por todo o corpo; coisa ridícula, pareço uma fada zumbi.
– Parece mesmo. Me responde uma coisa, por quanto tempo você ficou enterrado aqui?
– Alguns meses.
– É… até que você ficou bem conservado; seu corpo não sofreu tanto durante esse tempo.
– Maneiro, né? Olha o meu antebraço, não se assuste, tô colocando ele dentro do seu caixão.
– Uau! Realmente, está inteirinho, nem parece que é de um cadáver.
– Pois é; e não é só o meu rosto e meu antebraço que ficou conservado, olha só isso aqui.
– Credo, que nojento! Tira isso daqui, seu pervertido!
– Ah! ah! ah! Ficou ou não ficou conservado?
– Você é muito idiota! Por que não vai dar uma volta e me deixa em paz?
– É o que eu vou fazer, dar uma volta e pensar em como te tirar daí, cara amassada.
– Espera! Por que fica me chamando de cara amassada? Eu não tenho cara amassada.
– Você não se lembra como morreu, né? Deve ter sido feio, hein?
– Calma aí, eu lembro que estava pilotando minha moto e… bom, eu não me lembro de mais nada.
– Aí está, você sofreu um acidente de moto. Deve ter batido a cara em algum lugar, e deve ter sido uma bela de uma pancada pra ficar com o rosto desse jeito.
– Estou tão feio assim?
– Meu cumpade, se fosse eu aí no seu lugar e você enfiasse essa sua cara dentro do meu caixão eu iria ressuscitar de tanto susto.
– E você, espertão? Morreu como?
– Não quero falar sobre isso. Continuamos nossa conversa depois. Já anoiteceu e eu estou indo ver se algum gótico invadiu o cemitério; preciso assombrar alguém, me divertir um pouco e sair desse tédio.
***
– Ei! Cumpade, ainda está aí? Você não faz ideia da loucura que eu acabei de ver lá em cima.
– O que é? Vamos, desembucha!
– Um doido pulou o muro do cemitério, desenterrou um corpo e começou a dançar pelas sepulturas segurando o presuntão. Foi uma loucura! Você devia ter visto que incrível! Mas o coveiro Tavares apareceu e acabou com toda a diversão; velho chato!
– O coveiro Tavares ainda está vivo? Quantos anos aquela múmia tem? O último velório que eu estive presente foi há nove anos e aquele cachaceiro já estava um bagaço.
– Bagaço é pouco!
– Era difícil distinguir quem era o defunto, o que estava dentro do caixão ou o que cavava a sepultura.
– Exato! Ah! ah! ah! E você sabia que Michele é um nome masculino na Itália?
– Não sabia, e o que isso tem a ver?
– Escuta essa, um italiano que vivia aqui na cidade morreu e foi enterrado neste cemitério. Naquele dia houve dois velórios, e o coveiro Tavares ficou encarregado de construir duas lápides. Ao fim do velório de Michele, o italiano, levaram seu caixão até a sepultura onde ele seria enterrado; chegando lá, uma surpresa! Ah! ah! Era uma cova minúscula, a lápide era cor-de-rosa e com enfeites de ursinhos. O Velhote bebaço, como de costume, confundiu o nome do italiano com o nome de uma garotinha que seria enterrada naquele mesmo dia; dá pra acreditar nisso?
– Minha Nossa Senhora! É cada história que eu escuto desse coveiro.
– Eu também, mas ele é menos estranho que a antiga coveira.
– Coveira? Eu nunca vi uma coveira.
– Tá de brincadeira?! São tantas. Mas a que trabalhou aqui deu o que falar.
– Me conta!
– Calma lá, não sou contador de histórias, e não pense que eu já me esqueci que você invadiu a minha cova! Não consigo entender por que enterraram você numa cova que já tinha dono. Ou o coveiro Tavares estava doidão e fez mais uma tolice, ou você sabia do segredo dessa cova, sabia que poderia continuar consciente mesmo depois de morto e deu um jeito de ser enterrado aqui; e talvez você saiba de mais algum segredo. Vamos! Me diga! O que mais você sabe sobre essa cova?
– Já vai começar? Eu não sei o que eu estou fazendo aqui nessa porcaria de cova. A culpa de tudo isso deve ser só sua! O que você aprontou em vida, hein? Alguma coisa você fez e agora está amaldiçoado, pois isso aqui é uma maldição! O que você está escondendo? Você nem quis me dizer como morreu.
– Eu… eu… eu matei uma pessoa! Tá certo? Escondi o corpo no depósito de areia que eu trabalhava; depois eu tive que comprar a parte da areia onde o corpo estava escondido para ninguém o encontrar, levei tudo pra casa e despejei no meu quintal. É uma longa história mas, um espírito vingativo me assombrou por alguns dias e então eu acordei aqui. Não sei como foi a minha morte, mas agradeço por ter morrido porque eu não aguentava mais aquela assombração infernizando a minha vida.
– Que ótimo! Divido a cova com um assassino, só faltava essa.
– Divide? A cova é minha! Não estou dividindo nada com você! Ladrão de covas, se sou assassino você é um ladrão!
– Cala a sua boca, seu imundo! Assassino!
– Sai da minha cova!
– Imundo! Assassino!
– A cova é minha! A cova é minha! A co…
– O que está acontecendo, que barulho é esse?
– Xiii… pelo jeito vão te tirar daqui. Tá ouvindo? Estão cavando. Vou subir e dar uma olhada.
– Finalmente o coveiro Tavares percebeu que me enterrou no lugar errado. É isso aí! Me tira daqui, seu velho!
– Tenho uma má notícia. Não estão te tirando daqui, estão te substituindo.
– Hã?!
– Vão enterrar outra pessoa no seu lugar, como fizeram comigo. e tem mais, a pessoa que está dentro do caixão é o coveiro Tavares; o velhote finalmente bateu as botas.
– Tanto faz, me tirando daqui é o que importa. Adeus, otário! Isso, me puxem, vamos, mais rápido, mais rápido, não vejo a hora de sair daqui!
***
– Fala, meu cumpade! Sentiu a minha falta?
– Como isso é possível? Não! Não!
– Agora você está igualzinho a mim. Não desequilibra, se não você começa a descer pra debaixo da terra e eu não vou te buscar.
– Eu virei um espírito igual a você? Não acredito nisso. Eu quero voltar pra minha cova, quero a minha cova de volta.
– Sua não, eu já disse centenas de vezes que a cova é minha. Agora você entende que era melhor estar deitado lá, né?
– Pois é. Temos que tirar o velho Tavares da nossa cova.
– Vamos lá, ele já deve estar acordado. Eu fico com a orelha esquerda e você com a outra, vamos atormentá-lo e expulsá-lo.
– Ok!
– Vamos lá, no três.
– Um!
– Dois!
– Três! – EI, TAVARES, A COVA É NOSSA!!!