Lua Cheia

por Mundo Sombrio
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O entardecer vem pacífico, o céu rubro anuncia a morte de mais um dia. Desligo o carro. O motor não mais monopoliza minha audição. O som dos grilos, em outra época tão tranquilizador, irrita-me. Irritação de uma vida gasta, irritação de uma vida perdida.

Abro a porta e desço apoiando-me na coluna, movimento fácil, movimento de repetição, movimento doloroso de um deficiente. O peso de meu corpo maltratado joga-se contra membros, cuja inervação restante lembra e relembra: um tempo de saúde, de vigor, sem claudicação.

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Fecho a porta com um balanço de quadril e abro o porta-malas. Algemas, uma larga e pesada corrente com elos soldados e um cadeado. Não os usarei… Não mais…

Tiro as minhas roupas lentamente, meu corpo despido respira aliviado. O vento fresco me acaricia, a mãe natureza me recebe como filho perdido.

A trilha está quase dominada pelo mato que não se intimida, ando devagar, pois não sinto os pés. Não que um tombo me machucasse, pelo menos não fisicamente, mas ando preservando o pouco orgulho que me resta.

Passo ao lado de um pé de capim cidreira, esbarro nele de propósito, o cheiro me envolve, cheiro do chã servido numa noite fria, de uma cama fofa, da reza antes de fechar os olhos agradecendo a um Deus amoroso, do beijo materno e carinhoso na testa, o aroma de uma infância perdida.

Prossigo, o coração magoado e cansado, cansado das falsas gentilezas, de regras e mais regras criadas para serem quebradas, da maldade elaborada, da ganância e da usura dos homens, da sexualidade contaminada, da cobiça, da inveja, das mentirosas verdades.

O caminho deixa de existir, mata, mata fechada, passo como se estivesse em rua larga, não toco, não sou tocado, não faço barulho, sou parte desse caos verde e ordenado.

Percorro os três quilômetros, o Sol está sepulto. Chego onde há cinco anos me prendo, uma formação rochosa em forma de gruta, ao seu lado a água passa em volume e fúria, gritando que nada a impede, pois se molda, ajusta-se, não conhece obstáculo.

A noite é franca, a noite é clara, a noite é da lua volumosa que desperta em força e vida. Senhora de minha sina, libertadora de meus grilhões humanos.

Sinto sua magia em cada célula de meu corpo, a transmutação começa, não sou mais medo, ansiedade, desejo. Sou a criança noturna que pede a grande mãe seu túrgido peito.

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Minha coluna curva-se em mim, minhas costelas estalam com despeito, minha visão escurece e, por encanto, no escuro tudo vejo. Milhares de sons e cheiros me alcançam, onde havia pele, pelos pretos. Meu odor muda, sou almíscar, sou vegetação, sou sangue de minhas presas. Dentes obsoletos dão lugar a presas marmóreas e afiadas, abandono a posição em pé, sinto-me melhor de quatro, em duas mãos e dois pés, que agora são fortes patas. A dor da mudança se afoga em garganta sem cordas vocais e explode em uivo que ecoa por quilômetros, saúdo-me e saúdo a Lua.

Não sou eu, mas finalmente sou eu mesmo, sou a fera faminta.

É hora da caçada.

História de Terror escrita por autor Desconhecido

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