Eu me lembro bem. Eram meados de mil novecentos e oitenta. Foi o ano em que tudo mudou. Eu estava desempregado e não conseguia mais manter minha família. Meus filhos andavam descalços, com roupas velhas e rasgadas. Faltava tudo e muitas vezes não tínhamos com o que nos alimentar. Minha esposa estava desesperada. Eu andava triste e procurava algum alento na bebida.
Foi então que um amigo me avisou que a Companhia Ferroviária estava contratando trabalhadores braçais para a construção e manutenção das vias férreas. Sendo assim, apresentei-me no escritório da empresa e fui informado que era necessário passar por um teste de aptidão física e uma prova escrita.
Fiquei entusiasmado e nervoso ao mesmo tempo, mas não desanimei e no dia marcado para os testes eu estava lá. Fui o primeiro a chegar. Muitas pessoas também compareceram, mas, já nos testes físicos, muitos foram dispensados. Passei na primeira fase e fiz a prova escrita. No dia da divulgação dos resultados, ao ler a lista dos convocados, quase desmaiei de emoção ao encontrar meu nome entre os aprovados e todos nós, eu, minha mulher e meus filhos, nos abraçamos e choramos juntos.
O trabalho era duro e pesado. Arrancávamos trilhos velhos e enferrujados para colocar novos. Trocávamos as vigas de madeira, juntávamos as pedras para sustentar os trilhos e construímos muitos quilômetros de novas linhas. Não era fácil, porém, já no primeiro mês, recebi um gordo salário. Então tudo compensou. Meus filhos passaram a andar bem vestidos. Minha esposa era uma felicidade só ao ir às compras e toda a vida familiar foi reestruturada. Mais tarde até compramos uma casa.
O problema é que o trabalho me exigia longos períodos fora de casa. Chegava a ficar mais de um mês em viagem pelos trilhos para a manutenção dos trechos. Assim, ausente, a relação familiar esfriou. Meus filhos não queriam mais falar comigo. Minha esposa só chorava e também não queria conversa, dizia que estava muito sozinha e precisava de companhia, comecei a me sentir um intruso dentro da minha própria casa. A situação para mim era insuportável, não aguentei a rejeição e me mudei.
Nessa época, a empresa havia construído, ao longo da margem das estradas de ferro, várias casas para os funcionários que trabalhavam na manutenção desses trechos. Eu conhecia três casas que estavam a bastante tempo desocupadas por se localizarem em um local afastado da cidade, no meio rural cercado por uma mata. Estava triste por me separar da minha família, mas precisava de um lugar para mim. Então peguei a estrada e me encaminhei para o novo lar.
Dez quilômetros depois na estrada rural, encontrei o caminho entre a mata fechada e logo à frente, o acesso ao ponto da linha férrea onde as casas foram edificadas. Foram mais dois quilômetros a pé em meio ao matagal, até avistar as três casas isoladas no meio do nada na margem da linha de trem. Se não existisse uma estrada de ferro dificilmente alguém construiria uma casa ali. As três casas estavam vazias, então preferi ficar com a do meio que parecia mais conservada.
Estava agora sozinho e sem vizinhos. Passei o dia promovendo a limpeza do lugar e a noite estava bastante exausto, então apaguei as luzes e cai na cama. A escuridão ali era total e havia um silêncio ruidoso de mata, um cricrilar constante, cigarras cantando e, às vezes, o trinar de alguma ave noturna. Então, vencido pelo sono, adormeci profundamente.
Um som estridente me despertou de repente. Reconheci o inconfundível som de alerta sonoro das locomotivas. Consultei o relógio, eram três horas da madrugada. Meio tonto de sono ainda, voltei a deitar, mas nesse momento comecei a ouvir vários sons que se confundiam. Parecia que algumas pessoas estavam lá fora conversando. Eram um vozerio, gargalhas, pés se arrastando por todos os lados e coisas batendo. Imaginei que só poderia se tratar de uma mudança e fiquei feliz com a chegada de vizinhos, pois aquele lugar era muito solitário.
No dia seguinte, apesar da noite mal dormida, levantei cedo para dar as boas vindas aos novos moradores. Antes de sair pela porta dei uma espiada pela janela na casa do lado direito. Estava como sempre. Bem fechada vazia e sem cortinas nas janelas. Então deduzi que a mudança foi feita na casa da esquerda e cheguei à janela do lado oposto. Meu coração disparou. Também esta estava vazia. Não havia nada que denotasse que alguém estivesse morando ali. Pensei que poderia ter sonhado, mas o evento ruidoso que me acordou foi bem real.
Passei o dia com muitas dúvidas, meditando no ocorrido. Cheguei à conclusão de que estava com alucinações, porque havia muito tempo que me estressava muito e trabalhei demais em minha mudança e na limpeza da casa.
Quando a noite chegou deitei mais cedo para descansar, porém demorei muito pra pegar no sono. Estava quase dormindo quando pulei da cama com um susto. Fortes batidas na porta me despertaram de vez. Fiquei muito receoso pois não estava esperando ninguém, principalmente à essa hora da noite. Me armei com um cabo de vassoura e, parado no meio da sala indaguei:
-Quem é?
Não ouvi nenhuma resposta. Como estava muito escuro não me arrisquei a abrir a porta e voltei para a cama.
Estava me preparando para deitar e quase tive um infarto devido a um novo susto. O maldito apito do trem ecoou pelos meus ouvidos fazendo tremer as paredes da casa. Olhei o relógio e constatei que o trem das três mais uma vez não se atrasara.
Ao acordar de manhã estava completamente exausto. Mais uma noite insone, porém ainda havia muito trabalho a fazer para tornar aquela casa habitável. Passei o dia nos afazeres domésticos até para me distrair e não pensar mais no que ocorreu nas noites passadas. Mas quando começou a anoitecer comecei a ficar preocupado. Não desejava enfrentar mais incidentes.
Trabalhei até tarde e finalmente fui para a cama. Talvez a fadiga pudesse me trazer um sono pesado, sem ficar acordando com alucinações. Ledo engano.
Exatamente às três da manhã fui acordado por diversas vozes. Deduzi, pelo som, que dezenas de pessoas se concentravam na frente da minha casa. São cantorias, ladainhas e o barulho de muitos pés trocando passos. Tive a impressão de que se tratava de uma procissão passando perto da minha janela. Mas a essa hora?
Para me certificar do que estava acontecendo e provar a mim mesmo que não era louco, fui até a janela para me certificar de quantas pessoas estavam ali. Aproximei-me e, no mesmo instante em que abri as cortinas, todo o alarido cessou. Até as cigarras calaram seu zunido. Então um forte cheiro de velas queimadas encheu o ar. Apavorado demais para acender as luzes, fui tateando a parede em direção ao quarto. Queria entrar em baixo dos cobertores e me forçar a dormir. Quando visualizei meu quarto, onde a fraca luz da lua escapava entre as cortinas da janela, meu corpo amoleceu e minhas pernas ficaram bambas por causa da petrificante visão de uma mulher que estava ali, sentada na minha cama.
Era uma mulher de meia idade, penteava os cabelos. Estava de camisola e parecia estar preparando-se para deitar. Voltei ofegante devido ao pavor que sentia. Procurei com mãos descontroladas o interruptor da luz. Quando senti a saliência do botão e ouvi o click, a sala finalmente se iluminou. Então, pé-ante-pé fui me aproximando da porta do quarto. Abri a porta lentamente, ouvindo o ranger das dobradiças. Entrei bem devagar e…nada. Não havia ninguém ali. Mais uma vez as alucinações me atormentavam. Precisava dar um basta. Era necessário consultar um médico, não poderia viver assim.
Com a decisão tomada já comecei a me sentir melhor. Quando amanheceu não pude sair de casa. Uma chuva torrencial desabou o dia inteiro, de modo que fiquei consertando goteiras. Anoiteceu e as nuvens negras foram embora. A noite estava bem estrelada e a luz da lua iluminava as veredas. Não estava a fim de passar mais uma noite lutando com meus delírios. Passei então por cada cômodo da casa apagando as luzes para finalmente ter uma noite de descanso. Poderia cair a casa, mas não me levantaria.
Fui até a sala e alcancei a chave da luz, ao me virar gelei como um cadáver. Dei de cara com uma senhora muito estranha que, ao me ver, abriu desmesuradamente a boca e soltou um grito estridente. Com o susto, caí de costas e dei uma batida forte com a cabeça no chão. A dor me fez desmaiar.
Acordei no chão da sala. Levei instintivamente as duas mãos apertando o local da batida. Fechei os olhos esperando a dor acalmar. A mulher havia sumido. Então levantei e senti alguém me tocar. Fiquei muito apavorado porque ali não havia ninguém. Comecei a me virar para todos os lados como um louco. Sentia que pessoas passavam por mim, mas não conseguia vê-las. Estava ouvindo as pessoas conversando. Muitas vozes se misturavam como se a sala estivesse cheia de pessoas. De repente as vozes se uniram e gritavam em uníssono:
-Saia, sai dessa casa. Maldito…!
Obedeci prontamente. Passei cambaleante e aos tropeços fugi pela porta, completamente apavorado. Fui em direção aos trilhos. Segui pela estrada de ferro sem rumo, queria apenas me afastar daquele lugar amaldiçoado. Foi então que senti uma pancada muito forte nas costas. Caí em meio as pedras e vi, horrorizado, as rodas metálicas dilacerando meu corpo. Minhas vísceras se espalhavam e meu sangue tingia o metal quente. Sentindo a vida esvair-se e antes de entrar definitivamente na escuridão, ainda ouvi a retumbante buzina do trem das três horas.
Epílogo
Tudo começou quando meu marido morreu. Ele estava desempregado e vivia bêbado. Um dia ficou o dia inteiro no bar e resolveu voltar para casa cortando caminho pelos trilhos da estrada de ferro. Às três horas da manhã recebi a notícia de que ele fora atropelado por um trem. Fiquei desesperada. Estava agora sozinha e com três filhos para criar.
A Companhia Férrea me procurou e disse que ia ajudar a minha família. Se eu desistisse de processar a empresa ganharia uma pensão e uma casa. Parecia um bom negócio.
Fomos então procurar a casa e percebemos que nos enganaram. Deram-nos uma casa velha de madeira no meio do mato. Disseram para escolher entre as três casas existentes. Só a casa do meio estava habitável. Por sorte eu fazia parte de uma comunidade da igreja e várias pessoas nos ajudaram com a mudança e o conserto da casa. Parecia uma festa e entramos na madrugada com os afazeres. Mas então começou meu tormento. Já na primeira noite comecei a ver vultos.
Uma noite, depois de me banhar, vesti minha camisola, sentei na cama e comecei a pentear os cabelos quando percebi a sombra de um homem andando pela casa. Liguei para a minha irmã e pedi para ela vir dormir comigo porque eu estava com muito medo. Ela disse que viria imediatamente, mas como o lugar era muito longe acabei adormecendo na sala enquanto esperava ela chegar. Quando minha irmã chegou teve que bater muitas vezes bem forte na minha porta para eu acordar.
De manhã minha irmã disse que não voltaria mais e pediu para eu ir embora daquela casa, porque ela também viu o vulto. Eu não tinha para onde ir e, mais uma vez recorri aos meus amigos da igreja. O padre convocou a comunidade e várias pessoas compareceram à noite em frente a minha casa onde se iniciou uma procissão. Mesmo assim, ainda vi aquela sombra perambulando pela casa.
Já havia desistido e pensava em me mudar quando uma amiga trouxe uma senhora na minha casa. Disse que essa mulher via espíritos e os expulsava. Mas a vidente parecia uma louca, usava um vestido extravagante e seus cabelos estavam alvoroçados.
Ela andou pela casa respirando fundo e, aqui e ali, ela parava, fechava os olhos e cantarolava alguma coisa que eu não entendi. De repente essa mulher me assustou. Parou no meio da sala abriu a boca e soltou um grito pra lá de alto. Depois, com a respiração descompassada e olhos arregalados disse que ali havia um homem todo desfigurado e com as tripas de fora. Foi uma visão horrenda. A mulher disse que iria sair, mas voltaria com reforços. E assim fez.
Logo ela estava de volta junto com algumas pessoas. Nas mãos ela trazia um pequeno recipiente de metal cheio de água e um galho de uma planta qualquer. Ela começou a mergulhar o galhinho no recipiente e o agitava para benzer a casa enquanto seus amigos, de mãos postas e olhos fechados gritavam:
-Saia, sai dessa casa. Maldito e atormentado espírito. Lembre-se, lembre-se de quem você é e de como morreu. Só assim você seguirá para a luz.
Autor: Aldo Almeida
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